Nem tudo deve ser medido pela régua do cálculo político imediato.
Com isso, não quero menosprezar a importância da política. Na verdade, é justamente o contrário. Há coisas tão profundamente políticas, que a gente deve analisar sob uma perspectiva mais ampla e mais distanciada, no espaço e no tempo.
É assim que entendo as duríssimas críticas de Lula ao genocídio em curso na Faixa de Gaza, e que parece agora se estender para outros territórios da Palestina.
Em primeiro lugar, vamos analisar o que Lula realmente disse, e não o que outros disseram que ele disse.
“(…) Quando eu vejo o mundo rico anunciar que está parando de dar contribuição para a questão humanitária aos palestinos, eu fico imaginando qual é o tamanho da consciência política dessa gente? E qual é o tamanho do coração solidário dessa gente, que não está vendo que na Faixa de Gaza não está acontecendo uma guerra, mas um genocídio! Porque não é uma guerra entre soldados e soldados. É uma guerra entre um exército, altamente preparado, e mulheres e crianças.
Olha, se teve algum erro nessa instituição que recolhe dinheiro, puna-se quem errou, mas não suspenda a ajuda humanitária para um povo que está há quantas décadas tentando construir o seu Estado. O Brasil não apenas afirmou que vai dar contribuição — eu não posso dizer quanto porque não é o presidente que decide, é preciso ver quem é que cuida disso no governo, para saber quanto é que vai dar — como o Brasil disse que vai defender na ONU a definição do Estado palestino ser reconhecido definitivamente como Estado pleno e soberano.
É importante lembrar que em 2010 Brasil foi o primeiro país a reconhecer o Estado palestino. Eu preciso parar de ser pequeno quando a gente tem que ser grande. O que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existe um nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu, quando Hitler resolveu matar os judeus. Então não é possível que a gente possa colocar um tema tão pequeno. Você deixar de ter ajuda humanitária. Quem vai ajudar a construir aquelas casas que foram destruídas? Quem vai restituir a vida de 30 mil pessoas que já morreram? 70 mil que estão feridos? Quem vai devolver a vida das crianças que morreram, sem saber porque estavam morrendo? Isso é pouco para mexer com o senso humanitário dos dirigentes políticos do planeta?”
Essa foi a fala de Lula.
Dizer que isso é uma fala antissemita é uma dessas estratégias malucas da guerra híbrida moderna, de inverter inteiramente o sentido das coisas. Lula falou mal de Hitler. Lula lembrou que Hitler matava judeus. Lula lembrou que Hitler era tão desumano, tão cruel, que lembremos dele ao ver a matança de crianças em Gaza.
O que Israel está fazendo não tem desculpa.
Agora, voltando à análise política, Lula acertou em cheio, e pautou a imprensa nacional e internacional, por um bom tempo.
Não vejo nenhuma “perda” nem para Lula nem para o Brasil, por uma razão simples: o fluxo de notícias alarmantes vindo de Gaza, a inundação de vídeos e fotos do drama humanitário nas redes sociais, que só tende a aumentar nos próximos dias, dará cada vez mais razão a cada dia que passa.
Ou seja, Lula jogou com o fator tempo. Ele sabe que Netanyahu decidiu invadir Rafah, para onde o próprio exército de Israel decidiu amontoar, à força de mísseis em toda a parte, a maioria da população de Gaza. Se isso acontecer, o drama humanitário, que já é terrível, se tornará ainda mais grave.
Na verdade, nem que Netanyahu desistisse de invadir Rafah o drama seria muito menor, porque o fator tempo novamente joga em favor da morte. A qualquer momento, irá aparecer uma nova estatística tenebrosa: alguns falam que o número real de mortos na Palestina já chegaria a mais de 100 mil. A ausência de água limpa, serviços sanitários e alimentação razoável vem desesperando epidemiologistas, porque pode sugir, a qualquer momento, uma doença devastadora, que pode matar milhares de pessoas rapidamente na região.
Enfim, há uma tragédia anunciada. Ao subir o tom contra Israel, Lula se colocou do lado correto da história. A reação de Israel é apenas cínica.
Se há quem vulgurize o holocauso e o antissemitismo, é o atual governo de Israel e seus áulicos, que agora parecem querer jogar a pecha de antissemitas em qualquer um que se ponha contra a barbárie que eles estão promovendo em Gaza.
Quanto à mídia brasileira, ela está desorientada. Sabe que a maioria esmagadora da população tenderá, cada vez mais, a hostilizar as ações genocidas de Israel, pela força das imagens, vídeos e reportagens que a própria imprensa se vê obrigada a veicular diariamente.
E agora, a cada vez que a mídia brasileira publicar notícias do drama humanitário em Gaza, lembrará da fala de Lula e se inclinará a concordar com ele.
A extrema direita brasileira, por sua vez, voltou a escolher o lado errado da história. Primeiro se alinhou (e continua alinhada) a movimentos antivacina. Agora se enfileira ao lado dos genocidas de Israel.
Lula, portanto, fez um cálculo político no tempo e no espaço. No tempo, porque ele terá cada vez mais razão conforme o tempo passar. No espaço porque o mundo mudou. Lula percebeu que o espaço do Brasil para crescer está no Sul Global. É o que ele disse na mesma coletiva em que criticou Israel, que o Brasil tem um enorme espaço para aumentar seu fluxo comercial com países africanos, que estão aliás entre os que mais crescem no mundo. As exportações brasileiras podem experimentar um salto extraordinário se novos mercados se abrirem nesses países, e isso também explica o giro geopolítico de Lula. Em seu primeiro e segundo governos, ainda não havia tantas oportunidades no Sul Global, e mesmo assim Lula apostava nele. Mas agora há muito mais! As economias do Sul Global, suas populações, sua produção industrial e agrícola, sua infra-estrutura, tudo se expandiu nos últimos vinte anos, e há perspectivas de avançarem muito nos próximos anos, abrindo grandes oportunidades para o Brasil estabelecer parcerias estratégicas de desenvolvimento cruzado entre nosso país e o continente negro. E isso sem contar a Ásia, onde também os discursos e a postura de Lula, críticas ao cinismo imperialista, encontram uma excelente recepcão.
Em alguns dias, Lula receberá a visita de Anthony Blinken, secretário de Estado do governo americano, função equivalente ao ministro de relações exteriores dos EUA, mas também próximo a um “ministro da Defesa” ou da guerra. Tanto os EUA como a Europa não irão empurrar o Brasil para os braços da China, então não lhes interessa também produzir qualquer ruído diplomático com Lula. Tanto é assim que as falas de Lula, que enfureceram Israel, foram recebidas com resignação silenciosa no mundo rico. Ninguém deu um pio, até porque essas lideranças temem a popularidade de Lula em seus próprios países. Lula é popular na França, na Alemanha, na Inglaterra e nos EUA. Ele ainda é “o cara”, para lembrar o elogio de Obama.
Isso significa que a fala de Lula resultou num jogo de “ganha-ganha”.
Quanto à gritaria da ultradireita no Brasil, não vou dizer que ela não representa um perigo. Também não vou negar que a radicalização anti-imperialista de Lula tensione a relação do governo com os partidos e políticos do centro. Mas esse é um risco calculado, que Lula está disposto a correr em nome de um objetivo geopolítico de médio e longo prazo, além de constituir, e isso é o mais importante, uma postura moralmente corajosa e necessária. Se é para se colocar contra o genocídio, então a única atitude realmente digna, do ponto-de-vista moral, é radicalizar o discurso, até o ponto de ferir os brios dos genocidas. É o que nos resta. É o que Lula pode fazer. É o que fez.
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