“Ou você morre herói ou vive o bastante para ver você mesmo virar vilão”.
A icônica frase foi dita no filme ‘Batman: O Cavaleiro das Trevas’, por Harvey Dent, promotor recém-chegado em Gotham que sonhava em transformá-la em uma cidade livre da criminalidade e da corrupção generalizada.
Tudo muda, porém, quando ele sofre um atentado tramado pelo coringa e acaba perdendo o amor da sua vida, Rachel, e tendo o próprio rosto desfigurado num incêndio.
Aquele jovem promotor idealista, justo e honesto acabou comprovando a veracidade de suas próprias palavras ao se transformar no vilão “duas-caras”, vingativo, alheio a qualquer sentimento de compaixão e capaz de cometer as maiores atrocidades.
Durante o filme, Batman percebe que essa era a intenção do coringa desde o começo. Diferentemente dos outros criminosos, que faziam tudo movidos pela ganância, o coringa era movido por um objetivo maior.
Ele queria comprovar que ninguém é incorruptível, qualquer um é capaz de sucumbir ao mal, basta que se crie o ambiente perfeito: “A moral deles, a honra é uma piada ruim... se esquecem ao primeiro sinal de problema. As pessoas são tão boas quanto o mundo permite. Eu vou mostrar: quando tudo acabar, essas tais pessoas civilizadas vão comer umas às outras” [1].
No filme, o coringa – ideologicamente – vence. Ele consegue comprovar que realmente tinha razão. O promotor mais sério e honesto que Gotham já teve se foi junto com os seus ideais.
Mas, se a vida imita a arte, podemos nos perguntar: é possível no mundo real, que o coringa esteja certo?
Já denunciei, em diversas passagens [2] nesse mesmo veículo de comunicação - Pasquim Sobralense - que o sensacionalismo midiático em torno da segurança pública tem clara finalidade eleitoreira.
Não é de hoje que se manipula a realidade e se usa o direito penal como ferramenta de segurança pública e como instrumento populista para “conquistar a plateia”.
Os números são propositalmente inflacionados ou subnotificados (a depender do caso) por manchetes e discursos sensacionalistas para que se crie um cenário de caos, terror e absoluto pânico.
Vou dar um exemplo: do ano de 2017 a 2023, houve expressiva redução do número de homicídios no Brasil (cerca de 30%) [3]. Essa é uma realidade que não guarda nenhuma correspondência com o sentimento geral do povo, que é de total insegurança.
Isso pode ser explicado a partir dos discursos insanos de recrudescimento penal que todos os dias nos assaltam. Esses discursos trazem propostas que - se sabe - são demonstradamente ineficientes como políticas de segurança pública, mas que continuam a ser alimentados pelo medo generalizado que assola a população – alienada e suscetível de discursos emotivos de ocasião.
Leio, numa quinta-feira de feriado da consciência negra, que a Justiça cearense autorizou captação ambiental de conversas entre presos e advogados em presídio no Ceará [4].
O pedido foi feito pelo Ministério Público que parece desconhecer que a inviolabilidade de comunicações advocatícias e o seu sigilo (desde que relativas ao exercício profissional) são prerrogativas garantidas por lei [5] – uma lei federal que parece ter vigência em todo o território nacional, mas nenhuma eficácia.
Leio também, na Revista Fórum, que o governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, foi ovacionado por cristãos - que Jesus nos perdoe! - durante uma missa (!) após ter comandado a ação policial mais letal da história do país, que deixou ao menos 121 pessoas mortas [6].
Esses são exemplos de que, quando tomados pelo medo, somos mesmo capazes de esquecer os nossos ideais e valores mais caros, como que numa tentativa de justificar o injustificável.
Tudo parece fazer muito sentido: o coringa, visto como louco, provou ser mais sábio do que se poderia imaginar: “Introduza um pouco de anarquia, perturbe a ordem vigente, então tudo se torna um caos. Eu sou um agente do caos... ah, e sabe a chave para o caos? É o medo!” [7].
E assim se cria um sistema macabro que se retroalimenta: o medo gera decisões reativas e impensadas de combate ao crime, que por sua vez não diminui (como num passe de mágicas) com políticas criminais ruins e sem fundamento criminológico que, por sua vez, vai gerar mais pânico que, por sua vez, vai ser a mola propulsora que inflamará cada vez mais os discursos populistas de combate ao crime e assim sucessivamente.
Se, antes disso, o cenário contemplava a garantia de direitos e o devido processo legal, depois, se transforma num caos, num “vale-tudo” para combater o crime - até cometer mais crimes!
E assim o Estado, ele mesmo, se torna um agente criminoso, ao promover execuções sumárias de populações miseráveis, ao violar prerrogativas da advocacia e assim por diante.
Mas tudo parece justificado: “você achou que poderíamos ser homens decentes num tempo indecente”? Essa foi a pergunta feita por Harvey após se perceber tomado pelo ódio, vingança, ressentimento e justiçamento.
É pergunta que fica para cada um de nós.
_____________[1] Fala do coringa ao Batman em referência a Harvey Dent.
[2] A título de exemplo, vide: https://pasquimsobralense.blogspot.com/2025/07/dra-monica-matias-por-que-noticias.html
[3] https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2025/05/atlas-violencia-2025.pdf
[4] https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/seguranca/justica-autoriza-captacao-ambiental-de-convers...
[5] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8906.htm
[6] https://revistaforum.com.br/politica/2025/11/2/video-castro-aplaudido-em-missa-por-ao-mais-letal-da-...
[7] Frase dita pelo coringa a Harvey logo após a tragédia pessoal da qual foi vítima. A partir daí ele começa a praticar atentados e homicídios em série.
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*Mônica Matias é advogada criminalista, com atuação exclusiva na área do Direito Penal. É graduada em Direito pela UVA, especialista em Ciências Criminais pela Universidade Estácio de Sá e atualmente pós-graduanda em Direito Penal e Criminologia pela PUC do Rio Grande do Sul. Atuou como assessora de Delegado da Polícia Civil e foi presidente da Comissão de Defesa das Prerrogativas da OAB/Sobral. É membro da Comissão de Estudos em Direito Penal da OAB/Ceará e coordena o Núcleo de Defesa da Advocacia Criminal (NuDAC), iniciativa voltada à valorização e proteção da atuação da advocacia criminal no município e região.
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