THALIA TORRES: Nem um dia além da noite que se tem

Por Thalia Torres* 


Começa agora a robusta, trágica e angustiante contagem do tempo...

De um dia, ao visitar um casal de senhores que mais pareciam contentes com os embriagos da vida. Numa tarde fria, nostálgica. Dessas tardes que cheiram ao fim do inverno, germinando o início do verão do viver...

Ali estão eles! Com uma imensa alegria em nos receber. Com um entusiamo tão grande, que até esquecem do assombroso deboche que o tempo espelha em suas faces. 

Ele (o senhor) sentado á beira da calçada. Acima da calçada, um alpendre. No alpendre, num penduricalho, uma camisa social larga, amarrotada. Descalço, ao lado dos chinelos, uma cicatriz, as mãos enrugadas, uma vista cansada, mas que ainda assim, vislumbra um vingente passado o qual lhe é eterno.  No rosto, toda a trajetória de uma luta viril e truculenta, o abate do passar dos dias, além das curvas marcadas pelo tempo e lembranças de antigas histórias, lágrimas choradas ao vento. Ao lado dessa expressão, um orgulho contido, uma vaidade aliviada, conformada com tudo o que vivera até ali.

Salve os prêmios do tempo.....

Ela (a senhora) a esquerda, com olhar ríspido, mas com sorrisso saltitante. A mescla viva de que nem tudo nessa vida, o tempo pode nos retirar. Na cabeça um gigolé, no corpo, um vestido de cetim meio amarelado pelo tempo, desfiando linho a linho todo o ontem de tudo aquilo que  viveu. Sob a pele, rugas lhe concedidas como o brinde do tempo, do tempo que o tempo tem de acumular o desnecessário. No ar, o exalar de um perfume forte como o de eucalipto, banhado ao sândalo de flores da juventude que lhe foi tomada pelo tempo. Suas mãos tão pequenas e frias, como se as esfregasse sob o fino gelo da vida.

Já sofreu....

Logo a frente, a vista de um campo vasto, limpo, vago, lindo. Lindo de se ver. A esquerda, uma cerca tomada por rosas cor violeta, vermelhas e brancas. Ajudadas pelo tempo, esnobando de um céu limpo, sem grandes ventos e meio alaranjado, como nas tardes de verão de outrora... Adiante, um moinho, uma maquineta de moer os frutos daquela sagrada terra que durante tantos anos lhe conceberam força e sustento. Do alimento mais forte ao fraco, no plantio-da-vida. De modo que agora tudo o que se mói, são os escombros do tempo.

Aos fundos, uma mesa que mais exibe tamanho, mas que se deprecia em presença . Ao lado, uma coivara que há muito não se queima e a representação viva do que foi se viver melhor. No canto, a direita, um violão empoeirado, uma garrafa de hidromel ainda pela metade. Como se o fato de engolir a vida aos goles, se pudesse guardar cada gota de sobriedade para os próximos dias de peso. 

Ao vibrar de cordas da vida....

No alpendre, sob a mureta, o olhar sereno de um cão que contempla o tempo sob o peso de dois noventanos, parecendo-se contente ao sentir o cheiro das árvores quando o vento bate nelas e o cheiro de terra molhada que mais avisa a chegada da chuva num sertão que há muito passou, mas que ainda é o mesmo. Se preservando em cada objeto, cada mínimo detalhe junto da mocidade que ali se perdeu, mas que não apagou a esperança. Como uma planta que cresce no coração com a chegada da chuva.
De modo que, ao anoitecer, tudo o que resta é o amanhecer-morno do ontem. Numa única noite que coube a vida inteira. Mostrando que toda solidão é destinada ao melhor, antes que essa, fosse  passageira, e que o lograr da vida é uma espécie de "aí no trem do dor" até saltar. Pois é quando o amanhecer transforma o sonho em pesadelo, que se elide o viver ao meio, de tudo o que dói lembrar. 

É doloroso como o tempo queima a pele, queima o solo, queima a vida, sem ainda assim, queimar os amores. Os amores de uma terra que já teve de tudo, que já deu e se viveu de tudo, mas que ainda resiste. Um lugar, um cantinho, um resquício do mundo, o avesso profundo de um passado sublime.

Adiante, junto da terra, ás melhores lembranças de dias quentes e festivos se transformam em cinzas-do-tempo. Um tempo que agora é o vento, arrastando o que resta do alicerce-do-existir e das boas lições que a arte do trabalho naquela terra designou. 

A lembrança do ontem permanece viva junto dos escombros do prédio-dos últimos -dias. Se socorrendo no parapeito do que falta pra viver. Matando cada gota de vida e sofrimento daquilo que ser vivo nenhum pode renunciar. 

A idade deixa a sombra do tempo obsoleta, mas não ofusca a poesia que está embutida ao se passar pela vida...


*Thalia Torres (Lia), graduanda em Ciências Sociais (licenciatura) pela Universidade Estadual Vale do Acaraú - UVA.

Postar um comentário

1 Comentários

  1. Incrível como a descrição das coisas se equivalem ao afeto inerente do lugar. A riqueza dos detalhes se juntam à manifestações das emoções. É uma homenagem à memória sensível, não de quem narra, também. Mas sobretudo do sentimento de pertencimento.

    ResponderExcluir

Deixe seu comentário ou sugestão. Sua opinião é muito importante para nós!

Comments system