20/03/2020

POESIA: Saudade Esotérica


Saudade Esotérica

A saudade comeu meu corpo.
A saudade comeu minhas células.
A saudade comeu minhas vísceras.
A saudade comeu meus pontos finais e até às vírgulas.

A saudade comeu meu português e a minha linguística. 
A saudade comeu a minha vontade de concentração, vontade de leitura e de reflexão. 
Ela comeu meu mundo, minha vida e minha razão.
 
Comeu meu nome, meu endereço, meu prazer e o meu apreço. 
Ela comeu meu estímulo, meu grito e as paredes desse cubículo. 
Comeu minha vida, meu coração, minha libido e qualquer vontade de solidão.

Ela comeu ferozmente a minha independência emocional, e o tártaro do meu inferno astral.
Ela comeu meu chá, meu refresco, meu café, e todas as horas que eu estive em pé, pra escrever do quanto ela me desmembrou. 

A saudade me comeu me dizendo que já não sabe ser ausência, que tem de se reinventar, ter uma coerência pro que realmente a de ser o teu sentir, que não para mais de pensar em mim, e que se alimenta do meu viver sem ti. 

A saudade come inconsequentemente, é tragédia anunciada e sem precedentes, a saudade é a soma do devorar dos fatores do meu todo ausente, que se chama você. 

A saudade comeu a política e todas as minhas possibilidades de ressurgência social. 
A saudade comeu todos os meus livros, e até os meus ensaios de antropologia local. 

A saudade comeu todos os meus dias, e até os nobres livros de Norbert Elias. 
A saudade comeu meu português, meu literato e até às teorias de Clifford Geertz. 

A saudade comeu minhas perspectivas, meus valores e minhas crenças, ela comeu até a minha dispensa, que não desiste de esconder você. 

Ela comeu meu a saudade de Maria Bethânia, e todas as tardes de varanda que me fizessem lembrar de você. 
Ela comeu meu respirar, o meu brilho no olhar e até o meu paladar. 

Ela comeu minha interpretação, o meu sono e a minha predileção. 
Ela comeu pra me dizer que o que havia de comer seria o resto de você, que não desgrudou de mim.

Ela não suportou sua própria fome e se comeu inteira, se alimentou da própria saudade, e o que restou dela, foi a sua própria lembrança, de viver sem significância. 

A saudade se viu no espelho e disso sentiu receio, acabou comendo seu próprio meio. 
A saudade comeu as paredes, o meu carpete e até o pano de guardar confetes, ela comeu até meus devaneios tolos, que me torturam ao pensar em ti.

 Ela comeu o meu chão de giz, a minha flor de lís e a minha vila do sossêgo, comeu meus discos do Cartola, a saudade comeu meu caminho e me mostrou que o mundo é um moinho, que vai destruir meus sonhos tão mesquinhos, que vai reduzir às ilusões a pó. 

 Ela comeu meu existir, e até meu insistir nessa vontade que eu sinto, de tudo o que ainda não vi, de tudo o que ela comeu.

 A saudade comeu minhas prerrogativas, meu samba, e meus rompantes de bossa nova, meu folk e meu MPB, ela só não comeu a composição de João Gilberto, Vinícius e Tonzinho, das suas notas de fidelidade, dos poemas dos bares, por onde anda você. 

Ela caiu e quebrou os dentes, acabou-se em seu próprio acidente, que é pra acabar com esse negócio de você viver sem mim.


                             

                                 (Thalia Torres)

2 comentários:

  1. E os asmáticos de vida que morram com essa poeira de lua, que és tua poesia!

    ResponderExcluir
  2. Vivo a rua Vinicius de Morais
    Vivo o aeroporto Tom Jobim
    Vivo o Terreiro da Elis
    Só não vivo esse negócio de você viver sem mim.
    Mulher, tu so pode ser da terra de Iracema.
    Esse poema é a essencia alencarina, Iracema e a solidão pelo abandono de Martin.
    Sebastião José Filho
    Formado em tudo que não existe faculdade.

    ResponderExcluir

Mais lida da semana