MÔNICA MATIAS: O papel da guarda municipal de acordo com a jurisprudência dos tribunais superiores

 


O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF 995/DF, de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, entendeu que as Guardas Municipais são órgão integrante da segurança pública.

O STF também declarou 
INCONSTITUCIONAIS todas as interpretações judiciais que excluam as Guardas Municipais, devidamente criadas e instituídas, como integrantes do Sistema de Segurança Pública.

Na ocasião, o Ministro relator ponderou que:

 

Não se deve negligenciar, também, o julgamento do Tema 544 da Repercussão Geral, em que esta Suprema Corte firmou orientação segundo a qual as Guardas Municipais executam atividade de segurança pública (art. 144, § 8º, da CF), essencial ao atendimento de necessidades inadiáveis da comunidade (art. 9º, § 1º, CF)”.

 
Em que pese tal julgamento, o STJ tem destacado, em entendimento reiterado, que as guardas municipais não podem realizar diligências ostensivas típicas da atividade policial.

 
No julgamento do AgRg no HC 833985/SP, de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior, datado de 26/02/2024, referido Tribunal assentou que

 

A função das guardas municipais é restrita à proteção de bens, serviços e instalações municipais, não lhes sendo permitido realizarem atividades ostensivas ou investigativas típicas das polícias militar e civil” (Informativo nº 808, de 23 de abril de 2024).

 
De fato, apesar do que foi decidido pela Suprema Corte brasileira, no julgamento da APF 955, o STJ tem se mostrado firme no entendimento de que guardas municipais, em que pese executarem atividade de segurança pública e inclusive integrarem o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), não exercem atividade policial.

 
Por essa razão, de acordo com o entendimento do STJ, os agentes que integram tal órgão só estarão autorizados a realizarem diligências ostensivas típicas da atividade policial de forma excepcional em situações nas quais se demonstre concretamente haver clara, direta e imediata relação com a finalidade da corporação, como instrumento imprescindível para a realização de suas atribuições.

 

Ou seja, salvo na hipótese de flagrante delito, só é possível que as guardas municipais realizem busca pessoal de forma excepcional e se, além de justa causa para a medida (fundada suspeita), houver pertinência com a necessidade de tutelar a integridade de bens e instalações ou assegurar a adequada execução dos serviços municipais, assim como proteger os seus respectivos usuários.

 
As provas obtidas sem essa pertinência de atribuição funcional, por consequência, devem ser consideradas ilícitas, já que a busca teria ocorrido em franca violação à disposição constitucional que dispõe sobre as funções da guarda municipal.

 
Se extrai da jurisprudência do STJ, uma série de argumentos no sentido da necessidade de distinção entre as forças policiais (elencadas nos incisos I a VI do Ar. 144, caput, da CF/88) e as guardas municipais (cuja previsão ficou estampada, não no caput, mas no §8° do mesmo artigo). Vejamos:


O fato de as guardas municipais não haverem sido incluídas nos incisos do art. 144, caput, da CF não afasta a constatação de que elas exercem atividade de segurança pública. Isso, todavia, não significa que possam ter a mesma amplitude de atuação das polícias.

·       
A Constituição Federal de 1988 não atribui à guarda municipal atividades ostensivas típicas de polícia militar ou investigativas de polícia civil, como se fossem verdadeiras "polícias municipais".

·       
O Supremo Tribunal Federal, apesar de reconhecer em diversos julgados que as guardas municipais integram o Sistema Único de Segurança Pública e exercem atividade dessa natureza, nunca as equiparou por completo aos órgãos policiais para todos os fins.

·       
O STF, inclusive, negou pedido de concessão de aposentadoria especial aos integrantes das guardas municipais por equiparação às atividades de risco das polícias. Na ocasião, o Tribunal assentou que a atividade das guardas municipais tem caráter mais limitado, voltada à preservação do patrimônio municipal, e de caráter mais preventivo que repressivo".

·       
A Primeira Turma do STF asseverou que as guardas municipais não estão autorizadas a, ultrapassando os limites próprios de uma prisão em flagrante, realizar diligências investigativas ou diligências prévias voltadas à apuração de crimes.

·         
Tanto a Polícia Militar quanto a Polícia Civil - em contrapartida à possibilidade de exercerem a força pública e o monopólio estatal da violência - estão sujeitas a rígido controle correcional externo do Ministério Público (art. 129, VII, CF) e do Poder Judiciário (respectivamente da Justiça Militar e da Justiça Estadual), o que não acontece com as guardas municipais. Fossem elas verdadeiras polícias, por certo também deveriam estar sujeitas ao controle externo do Parquet e do Poder Judiciário, em correições periódicas.

·         
É de elevado risco que se autorize que cada um dos 5.570 municípios brasileiros tenha sua própria polícia, subordinada apenas ao prefeito local e insubmissa a qualquer controle correcional externo. De fato, mesmo no modelo de policiamento sujeito a controle externo do Ministério Público e concentrado em apenas 26 estados e um Distrito Federal já se encontram dificuldades de contenção e responsabilização por eventuais abusos na atividade policial, é fácil identificar o exponencial aumento de riscos e obstáculos à fiscalização caso se permita a organização de polícias locais nos 5.570 municípios brasileiros.

·         
Os agentes do corpo de bombeiros militares e os policiais penais, por exemplo, também integram o rol de órgãos de segurança pública previsto nos incisos do art. 144, caput, da Constituição, mas nem por isso se cogita que possam realizar atividades alheias às suas atribuições, como fazer patrulhamento ostensivo e revistar pessoas em via pública à procura de drogas.

·         
O próprio relator da ADPF 995 fez constar que o âmbito de atuação das guardas é limitado, tanto que ressaltou que: "as Guardas Municipais têm entre suas atribuições primordiais o poder-dever de prevenir, inibir e coibir, pela presença e vigilância, infrações penais ou administrativas e atos infracionais que atentem contra os bens, serviços e instalações municipais. Trata-se de atividade típica de segurança pública exercida na tutela do patrimônio municipal. Igualmente, a atuação preventiva e permanentemente, no território do Município, para a proteção sistêmica da população que utiliza os bens, serviços e instalações municipais é atividade típica de órgão de segurança pública".

·         
Não se pode confundir "poder de polícia" com "poder das polícias" ou "poder policial". "Poder de polícia" é conceito de direito administrativo previsto no art. 78 do Código Tributário Nacional e explicado pela doutrina como "atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público" (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20 ed. São Paulo: Atlas, 2015, 158). Já o "poder das polícias" ou "poder policial", típico dos órgãos policiais, é marcado pela possibilidade de uso direto da força física para fazer valer a autoridade estatal, o que não se verifica nas demais formas de manifestação do poder de polícia, que somente são legitimadas a se valer de mecanismos indiretos de coerção, tais como multas e restrições administrativas de direitos. Dessa forma, o "poder das polícias" ou "poder policial" diz respeito a um específico aspecto do poder de polícia relacionado à repressão de crimes em geral pelos entes policiais, de modo que todo órgão policial exerce poder de polícia, mas nem todo poder de polícia é necessariamente exercido por um órgão policial.

·         
Conquanto não sejam órgãos policiais propriamente ditos, as guardas municipais exercem poder de polícia e também algum poder policial residual e excepcional dentro dos limites de suas atribuições. A busca pessoal - medida coercitiva invasiva e direta - é exemplo desse poder, razão pela qual só pode ser realizada dentro do escopo de atuação da guarda municipal.

O Ministro Rogério Schietti Cruz, no julgamento do HC 830530 ressaltou  que o entendimento do STJ não confronta com o que foi decidido pelo STF na supramencionada ADPF, mencionando inclusive que o próprio ministro Alexandre de Moraes, relator da ADPF 995, em sua obra afirma que as guardas municipais são “destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei, sem, contudo, reconhecer-lhes a possibilidade de exercício de polícia ostensiva ou judiciária" (MORAES, Alexandre de Direito Constitucional. 39 ed. São Paulo: Atlas, 2023, p. 940).


Resta-nos aguardar para ver em que sentido se encaminhará a jurisprudência.


_______________________________________________________


REFERÊNCIAS:

art. 144, caput, da CF

 RE n. 846.854/SP, Rel. Ministro Luiz Fux, Tribunal Pleno, DJe 7/2/2018

ADC n. 38/DF, Rel. Ministro Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, DJe 18/5/2021

AgR no MI n. 6.515/DF (Rel. Ministro Alexandre de Moraes, Rel. p/ o acórdão Ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe 6/12/2018)

AgR nos MI n. 6.770/DF, 6.773/DF, 6.780/DF e 6.874/DF

ARE n. 1.215.727/SP (Tema de Repercussão Geral n. 1.057, DJe 29/8/2019)

AgR nos EDcl no AgR no RE n. 1.281.774/SP

REsp n. 1.977.119/SP 

ADC n. 38/DF

Art. 4º da Lei n. 13.022/2014: "É competência geral das guardas municipais a proteção de bens, serviços, logradouros públicos municipais e instalações do Município";

Art. 9º da Lei n. 13.675/2018: "É instituído o Sistema Único de Segurança Pública (Susp), que tem como órgão central o Ministério Extraordinário da Segurança Pública e é integrado pelos órgãos de que trata o art. 144 da Constituição Federal, pelos agentes penitenciários, pelas guardas municipais e pelos demais integrantes estratégicos e operacionais, que atuarão nos limites de suas competências, de forma cooperativa, sistêmica e harmônica"

(Publicado originalmente AQUI

Postar um comentário

0 Comentários

Comments system