CASO DANIEL ALVES: por que é preciso tanto para condenar?


 

Por Mônica Matias 

Denúncias de violência sexual contra mulheres não são raras no mundo do futebol, que em janeiro de 2023 sofreu mais um abalo, quando foi amplamente noticiado pela imprensa que o então jogador Daniel Alves teria sido preso, acusado de “agressão sexual”.

 

O fato teria ocorrido no banheiro de uma discoteca em Barcelona na madrugada de 31 de dezembro de 2022. Alves permaneceu preso por 14 meses na Espanha, sendo que no dia 22 de fevereiro de 2024, foi proferida sentença, que o condenou a 4 anos e 6 meses de prisão.

 

Na última sexta-feira (28 de março) uma inesperada reviravolta surpreendeu a todos: Daniel Alves foi absolvido por insuficiência probatória[1].

 

Não demorou para que as redes sociais fossem tomadas por críticos e militantes da web. Até mesmo personalidades conhecidas no cenário intelectual nacional ousaram opinar sobre a “falta de acerto” da decisão proferida.

 

As críticas foram muitas, desde a cegueira da justiça a afirmações de que o fator financeiro teria pesado em favor do jogador. Intelectuais, por seu turno, apontaram que o julgamento teria servido apenas para confirmar a marcadamente conhecida e escancarada desigualdade de gênero (segundo eles, a palavra do homem, apesar das várias versões conflitantes apresentadas, teria tido mais peso do que a palavra da mulher, que se manteve a mesma desde o início).

 

Sem adentrar no mérito do caso, pretendo nesse texto me debruçar sobre uma das questões mais instigantes do processo penal: afinal, por que é preciso tanto para condenar?

 

Podemos iniciar propondo a seguinte provocação:

 

Em condições de normalidade política, parece mais grave que uma pessoa seja condenada a pagar valores monetários (a título de indenização cível, por exemplo) por um dano que na realidade não causou ou que uma pessoa seja condenada a passar 5 anos de sua vida na prisão por um crime que não cometeu? Ou então, que o Estado seja condenado a pagar pensão previdenciária a alguém que, na verdade, não tem o direito de recebê-la ou que uma pessoa seja condenada a passar 8 anos de sua vida numa prisão por um crime que não cometeu?

 

O que estou querendo dizer com essas provocações é que a lógica que prevalece no processo penal é invariavelmente diversa da lógica existente nos outros ramos do Direito, sejam eles quais forem.

 

Isso ocorre em razão da relevância do bem jurídico tutelado. Se uma pessoa corre o risco de perder, injustificadamente, uma parte de seu patrimônio caso seja condenada pelo Estado numa Ação Indenizatória, por exemplo, o Estado lhe causará um dano que não devia ter causado, é verdade, mas cuja repercussão não seria tão significativa se o bem jurídico em risco fosse não o patrimônio, mas a liberdade, pois aquele se recupera, esta não.

 

Por essa razão num processo de natureza não penal a carga probatória é equilibrada entre as partes que “disputam” no processo. O mesmo não ocorre no processo penal, pois a acusação assume toda a carga probatória.

 

Ora, se no processo penal se presume a inocência[2] do acusado, então ele não deve preocupar-se em provar a sua versão dos fatos, pois já milita em seu favor essa presunção, sendo que ela só pode ser afastada caso seja processualmente comprovada a sua culpa, o que só ocorre (pelo menos no Brasil) depois do trânsito em julgado da sentença condenatória.

 

É importante compreender que, no processo penal, não importa tanto o que o réu diz, nem se ele reformulou inúmeras vezes a versão inicialmente apresentada. Aliás, ele não precisa dizer nada, sendo-lhe facultado apresentar sua versão dos fatos apenas se assim desejar (sem que lhe seja imposto, em regra, qualquer ônus de provar o alegado).

 

Recordemo-nos que uma das garantias fundamentais do processo penal é a de que o réu tem o direito de permanecer em silêncio[3] sem que isso seja usado em seu desfavor.

 

Ora, se o ônus probatório recai sobre a acusação, o que importa de verdade é que a versão apresentada por ela (acusação) se mantenha coerente e seja corroborada pelas provas produzidas ao longo da instrução processual.

 

Se por um lado, o acusado não detém nenhuma parcela de carga probatória, sendo esse (ao menos em regra) um ônus exclusivo da acusação, por outro, a lei não especifica como uma prova deve ser valorada, ficando a critério do julgador a análise racional dos elementos produzidos em instrução processual para posterior tomada de decisão e justificação.

 

Apensar disso, desse silêncio da lei, o que se sabe é que o critério utilizado para valorar a prova deve funcionar como uma espécie de suporte (“standard”): deve ser mais ou menos forte ou resistente a depender do peso que se coloca sobre ele.

 

Retomando o raciocínio anterior, se se acusa alguém de produzir dano indenizável, essa alegação deve ser provada (claro!), mas com um suporte inferior ao que se precisaria caso a acusação fosse de cometimento de um crime de estupro que tem maior peso (necessitando de suporte maior, mais resistente), já que pode acarretar pena de prisão que varia de 6 (seis) a 10 (dez) anos, no caso do Brasil, por exemplo.

 

A verdade é que a reconstituição dos fatos tal como ocorreram é missão que do ponto de vista racional se mostra impossível. Uma decisão justa deve ser aquela que adota critérios científicos (racionais e lógicos) de valoração de prova para afirmar, sempre em grau probabilístico, qual dos enunciados – da acusação ou da defesa – é preferível diante dos elementos de prova colhidos.

 

Nesse caso, importa não quem está (ou se está) mentindo, importa de fato se a tese acusatória encontra respaldo nos autos, pois em todo caso sempre será preferível absolver um culpado do que condenar um inocente, ainda que esse não seja o melhor dos sistemas e que siga provocando a incompreensão e indignação das pessoas.



[1] https://www.bbc.com/portuguese/articles/c8d4d40jznzo

[2] CF/88, Art. 5°, LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

[3] CF/88, Art. 5°, LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;

 


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