Paz na Ucrânia?


                                     Bandeira ucraniana acenada em meio à destruição provocada pela guerra • Metin Aktas/Anadolu Agency via Getty Images

Nos últimos dias Donald Trump e Vladimir Putin conversaram por telefone, o que foi seguido por uma reunião em Riad entre Sergey Lavrov e Marco Rubio. A pauta, obviamente, só poderia ser a paz na Ucrânia.

Mantenho, porém, ceticismo em relação a esse objetivo, bem como em relação à conveniência de uma "paz" qualquer na Ucrânia. E, ainda assim, essa aproximação não deixa de ter aspectos completamente transformadores para nosso entendimento da ordem mundial.
Podemos começar pelo fato de que os EUA estão rompendo (ou, pelo menos, tensionando gravemente) a "Aliança Atlântica", base do projeto ocidental.

Contemporaneamente, tem sido comum para a maioria das pessoas atrelar América do Norte e Europa como parte de uma mesma civilização, dotada de uma mesma identidade cultural. Historicamente, porém, isso nunca fez sentido e uma ideia de "Ocidente" abarcando essas duas massas terrestres sempre foi bastante artificial e não encontraria respaldo nem nos Pais Fundadores dos EUA, nem nos principais pensadores europeístas.
Os "peregrinos" puritanos que fundaram os EUA percebiam a sua migração como uma "fuga do Egito" para fundar uma "nova Israel", uma "Terra Prometida". No messianismo fundacional estadunidense, a Europa é valorada de forma puramente negativa, como "Egito", "Babilônia" ou "Roma": tirânica, ímpia, idólatra, irracional, etc. É por isso que, apesar de inspirações iluministas ou mesmo elogios de Jefferson a Veneza, cada aspecto da construção dos EUA foi pensado em oposição à Europa: do modelo familiar à forma do Estado, passando pelos valores fundamentais.

A Aliança ou mesmo "unidade" EUA-Europa não é senão o resultado da Segunda Guerra Mundial, após um século XIX no qual os EUA fizeram tudo que estava em seu alcance para enfraquecer a Europa e dissolver os impérios europeus.

O problema dessa aliança no século XXI é o horizonte segundo o qual parece estar se reconfigurando o Nomos da Terra; com a ideia do "Grande Espaço" continental se sobrepondo a alianças mais abstratas. Para as potências, assume máxima importância tudo aquilo que está ao alcance - enquanto toda as paisagens longínquas afundam na indistinção e no esquecimento (Israel, para os EUA, ainda é exceção porque a relação entre ambos países é completamente anormal).
O que representa, então, a Ucrânia para os EUA hoje? Um buraco no qual os EUA estão afundando recursos em alcançar qualquer objetivo claro e enquanto problemas e oportunidades mais prementes aparecem no Canadá, na América Central, no Ártico e no Caribe. Pior: um "buraco" na zona de influência de uma outra grande potência engajada na reestruturação de seu Grande Espaço.
A Europa, aí, não representa nada. Ela não representa nada porque fracassou em todas as suas pretensões de unificação do século XIX até a Segunda Guerra Mundial, terminando com o continente dividido e fragmentado. A União Europeia é uma paródia e, pior, um apêndice da OTAN. Sem autonomia estratégica, ela não tem voz - e sua ausência de voz é acompanhada por uma total ausência de horizonte. As elites europeias prenderam-se em uma bolha, na qual elas lidam apenas com simulacros. É por isso que o discurso de Vance tanto as chocou, porque ele falou coisas que deveriam ser óbvias para os líderes europeus...mas não são.
Agora, diante dessas condições, a Europa só pode recuar e acatar as negociações russo-estadunidenses - para a quais não foi convidada - ou dobrar a aposta, tentando manter a Ucrânia de pé, mesmo que sem os EUA. Essa via é vista, por parte razoável da liderança europeia, como uma maneira de recuperar uma autonomia estratégica para a Europa...mas não em prol de qualquer projeto autenticamente europeu, e sim em prol do projeto globalista europeu.
A Europa conseguiria, porém, suprir os fornecimentos estadunidenses para a Ucrânia em caso de retirada de Washington, unilateralmente, do conflito? De jeito algum. Mesmo que os europeus invistam na recuperação de seu complexo militar-industrial, não haveria tempo hábil para a Ucrânia segurar os russos enquanto espera os resultados industriais da União Europeia. Se essas negociações forem bem sucedidas, portanto, ou os combates pararão imediatamente ou durarão ainda mais uns 2-3 meses após uma retirada estadunidense.
Bem, mas em que medida esta paz proposta pelos EUA agora interessa à Rússia?
Existe uma euforia exagerada em relação a Trump na Rússia, basicamente pelo contraste profundo em relação às outras lideranças estadunidenses. Isolados pelo Ocidente e ameaçados com um holocausto nuclear por Biden, os russos olham para Trump com um óculos extremamente róseo e veem com expectativa as infinitas promessas milagrosas de Washington. Isso pelo menos no âmbito da "sociedade civil".
Por enquanto, as propostas para uma paz na Ucrânia enunciadas pelos EUA são pouco realistas porque não se comunicam bem com os fatos militares e não respondem às demandas da operação militar especial. Como ficam para a Rússia, por exemplo, as partes ainda não tomadas das províncias oficialmente anexadas como Kherson e Zaporizhia? Como implementar a necessária "engenharia" cultural chamada pelos russos de "desnazificação"? Como garantir o não ingresso da Ucrânia na OTAN considerando que Trump governará os EUA, a priori, apenas até o início de 2029? Faz sentido para a Rússia abandonar Kharkov e Odessa para os ucranianos? E caso não, como convencer os EUA disso? Uma "zona-tampão" incluindo essas regiões bastaria?

Na prática, qualquer acordo assinado pelos EUA será muito frágil e não poderá ter qualquer outra natureza senão a de um esforço de ganhar tempo para reiniciar um conflito com a Rússia em alguns anos porque para a geopolítica talassocrática dos EUA enfrentar e tentar desintegrar a Rússia não é opcional, mas uma questão existencial - e ainda não há evidências suficientes de que Trump está transicionando os EUA de uma geopolítica talassocrática para uma telurocrática. O abandono da Europa é um bom sinal, mas ainda não há nada garantido mesmo nisso.
Essa transformação geopolítica dos EUA sob Trump está parecendo um esforço de "demolição controlada" do multilateralismo unipolarista em prol de um interlúdio multipolar, até que os EUA tenham força suficiente para recobrar a hegemonia. No meio tempo, o interesse do setor trumpista do Deep State será o de liquidar os aliados da Rússia no Oriente Médio, Ásia, África e Américas (inviável de forma completa, talvez) para que seja mais fácil enfrentar a Rússia no futuro.
Para a Rússia, portanto, o mais conveniente é seguir entretendo esses diálogos com os EUA, mas continuando a operação militar especial russa na Ucrânia, e e possível convencer os EUA a uma retirada unilateral para que Moscou tenha carta branca.
Paz sem a liquidação de um tal "Estado-nação ucraniano" - punhal voltado contra o projeto imperial russo - não passa de uma ilusão.

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