08/07/2024

EMANUELA SOUSA: Corpo aceso e seco


O tempo me secou, é verdade. Esses amores enfraquecidos, fajutos, a falta de vivenciar algo genuíno e não me intoxicar foi a causa da atual tragédia. O diagnóstico acusa: fiquei dura pela escassez de afetos.

É fácil passear pela solidão, você passeia sobre ela, gosta e não quer mais sair desse espaço. A sua companhia acaba se tornando o suficiente para você querer ficar ali por tanto tempo, que você já não mais se imagina dividindo a cama, o quarto nem o livro com outro alguém. Foi a solidão quem me roubou de mim, e foi ela quem me acompanhou durante esses anos.

Mas você, daí do outro lado, não se culpe por isso. Quando você chegou aqui, eu já estava em tempos de letargia, a memória, fraca, apagou todas as lembranças do que é viver um amor vivo açucarado. Nenhum ser está livre de vivenciar tragédias, mas a forma como lidamos nos persegue durante o percurso. Ninguém sabe, mas dentro desse quarto a luz me incomoda, estou há tanto tempo vivenciando a sombra e a solidão que qualquer raio de luz me queima os olhos. Aqui do lado da sombra é melhor, posso te admirar enquanto você atravessa a rua. Pode ir, estou aqui de longe te vendo.

Meu romantismo barato, murcho, simples, ninguém quis nos últimos anos. O coloquei à venda na estante, recebi olhares, propostas, algumas negociações, mas... nada. A oferta foi em vão. Acabei guardando-o na gaveta junto com as poesias de Hilda Hilst, que aliás, suas obras, tão minhas, estão lá na prateleira, empoeiradas. De vez em quando passo por elas e lembro.

Já não queria mais falar de amor, pra quê e para quem? Eu queria falar de amor para quem tem ouvidos para me ouvir. Estou bem, nada me falta, tenho a mim, tenho uma rede de amigos, tenho meia dúzia de coisas para estudar e me ocupar. (As mentiras que contamos para nós mesmos). Mas a gente sabe, no fundo, que de nada serve o homem, se não para amar.

Ainda sou doce, amável, meu olhar é de ternura. A tragédia entre um amor solitário e o descuido foi o que me transformou em arquitetura de dor e angústia, me deixando presa entre nós. Meu corpo se tornou seco, dormente, mas se acende em chamas quando me olha.

Aliás, tu ainda és uma das coisas que ainda fazem meu corpo queimar em chamas. Por favor, não tire os olhos de mim.

Ainda acredito na revelação, num futuro vivo de nós dois. Deitada no seu peito, vou ficar.

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Emanuela Sousa é poeta e escritora, natural de São Paulo do Abc paulista. Fez teatro aos 11 anos e se arriscou pela pintura e em desenhos, mas foi na escrita que se encontrou. Emanuela hoje é autora de dois livros publicados: Interrupto, sobre todas as coisas que guardei (2016) e Coração a bordo (2020) Além dos livros ela é colunista em alguns portais nacionais.

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