Sobre a Omissão
Victor Araújo*
Ainda que fôssemos surdos e mudos como uma pedra, a nossa própria passividade seria uma forma de ação.
(Jean-Paul Sartre)
Rousseau, em sua célebre obra “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”[1], de 1755, atribui a fundação da sociedade civil a “o primeiro a quem, tendo cercado um terreno, ocorreu dizer: Isto é meu e encontrou gente simples o bastante para dar-lhe crédito, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil” (2010, p. 119).
Apesar de Rousseau enfatizar que naquele estágio nada seria como era antes, pois a ideia de propriedade já estava solidificada no espírito humano, uma reflexão pertinente a partir dessa passagem pode ser desencadeada. Antes de iniciar tal reflexão, convido ao leitor a pensar um pouco comigo o conceito de omissão.
O termo “omissão” pode conter diferentes significados, apesar de não apresentarem uma divergência significativa de sentido. Tal palavra vem do Latim omissus, particípio passado de omittere: “deixar escapar, perder, renunciar, não falar de”. E esta palavra se compõe de ob-, intensificativo, mais mittere, “enviar, deixar ir”[2].
Quero aqui enfatizar a direção da palavra como “ausência de ação”[3]. Uma simples operação de raciocínio lógico pode constatar que a “ausência de ação” é por si só uma ação. Partindo dessa designação é que pretendo analisar o trecho posterior que Rousseau descreve as consequências da fundação da sociedade civil.
“Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando os postes ou preenchendo o fosso, tivesse gritado aos seus semelhantes: Evitai dar ouvidos a esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e a terra, de ninguém” (2010, p. 119).
Nessa passagem, Rousseau expõe o quão significativa a “ação da ausência de ação”, ou seja, a omissão, demonstrou ser. Como dito anteriormente, Rousseau explica que, naquele momento, não seria possível um retorno pois tal noção de propriedade se construiu a partir de desenvolvimentos progressivos no espírito humano. Por conta disso, a omissão pode ser justificada por uma certa inevitabilidade do processo histórico?
A omissão justificada dessa forma pode conduzir a humanidade para o que se compreende como o “fim da história” em sentido hegeliano. Tendo em vista que tenhamos cruzados os braços diante de tal inevitabilidade, a esperança de mudança e de rompimento com a atual ordem social torna-se inviável.
A omissão possui uma relação intrínseca com a indiferença. Na passagem ao qual Rousseau expõe a fundação da sociedade civil, a omissão como indiferença se dá através da passividade diante da fatalidade.
Gramsci trata da mesma temática, em um texto conhecido como “os indiferentes” ou “odeio os indiferentes”, da seguinte forma:
O que acontece, não acontece tanto porque alguns querem que aconteça quanto porque a massa dos homens abdica da sua vontade, deixa fazer, deixa enrolar os nós que, depois, só a espada pode desfazer, deixa promulgar leis que depois só a revolta fará anular, deixa subir ao poder homens que, depois, só uma sublevação poderá derrubar. A fatalidade, que parece dominar a história, não é mais do que a aparência ilusória desta indiferença, deste absentismo.[4]
Em Rousseau, a fatalidade – pode-se pensar na fundação da sociedade civil através da ideia de propriedade- é vista de uma maneira irremediável. No mesmo texto de Gramsci, a discussão não se limita a pensar a indiferença apenas pelo “deixar acontecer”, mas do “não fazer acontecer”. Gramsci aponta a tomada de posição como um remédio para a aparente inevitabilidade da fatalidade no processo histórico. Segundo Gramsci, a indiferença é um peso morto da história que atua poderosamente, de maneira passiva, sobre a mesma[5].
Vejamos essa passagem de Stéphane Hessel do seu texto chamado “Indignai-vos”:
Vivemos em uma interconectividade que nunca existiu antes. Mas nesse mundo há coisas insuportáveis. Mas nesse mundo há coisas insuportáveis. Para vê-las é preciso olhar bastante, procurar. Digo aos jovens: procurem um pouco, vocês vão encontrar. A pior das atitudes é a indiferença, é dizer ‘não posso fazer nada, estou me virando’. Quando assim se comportam, vocês estão perdendo um dos componentes indispensáveis: a capacidade de se indignar e o engajamento, que é consequência desta capacidade. [...] Os muito pobres, no mundo de hoje, ganham meros dois dólares por dia. Não podemos deixar a distância aumentar ainda mais. Só esta constatação já deve motivar um engajamento. [...] Aos jovens eu digo: olhem à sua volta e vocês encontrarão os temas que justificam a sua indignação – o tratamento dado aos imigrantes, aos sem documentos, aos ciganos. Vocês encontrarão situações concretas que os levarão a praticar ações cidadãs fortes. Procurem, e encontrarão![6]
Durante muitos séculos, sobretudo na idade média em que o mundo ocidental era conduzido por uma mentalidade teocêntrica, os acontecimentos cotidianos eram concebidos como produtos de forças divinas – o próprio Deus. Tendo em vista que se tratava de uma sociedade estamental com baixa mobilidade social, as pessoas acreditavam que sua condição de vida era daquela maneira pela vontade de Deus e, por conta disso, tal condição seria definitiva e imutável.
No entanto, atualmente, vivemos em um mundo interconectado onde existe algumas variáveis determinantes para dificultar o exercício de uma cidadania ativa e manter os indivíduos numa situação de passividade, uma delas são as desigualdades sociais - fazendo com muitos não possam exercer essa cidadania ativa - e outra é o comodismo que o progresso da técnica trouxe – fazendo com que outros muitos não queiram exercer essa cidadania ativa.
Padre Antônio Vieira, em seu sermão da Primeira Dominga do Advento[7], afirma que são as omissões os mais perigosos de todos os pecados. Em seu texto, equipara a gravidade do ato de omitir-se a outras ações repugnantes:
Por uma omissão, perde-se uma maré, por uma maré, perde-se uma viagem, por uma viagem, perde-se uma armada, por uma armada, perde-se um estado. Daí conta a Deus de uma índia, daí conta a Deus de um Brasil, por uma omissão. Por uma omissão, perde-se um aviso, por um aviso, perde-se uma ocasião, por uma ocasião, perde-se um negócio, por um negócio, perde-se um reino. Daí conta a Deus de tantas casas, daí conta a Deus de tantas vidas, daí conta a Deus de tantas fazendas, daí conta a Deus de tantas honras, por uma omissão. Oh! que arriscada salvação! Oh! que arriscado ofício é o dos príncipes e o dos ministros! Está o príncipe, está o ministro divertido, sem fazer má obra, sem dizer má palavra, sem ter mau nem bom pensamento, e talvez naquela mesma hora, por culpa de uma omissão, está cometendo maiores danos, maiores estragos, maiores destruições, que todos os malfeitores do mundo em muitos anos. O salteador na charneca com um tiro mata um homem; o príncipe e o ministro com uma omissão matam de um golpe uma monarquia. Estes são os escrúpulos de que se não faz nenhum escrúpulo; por isso mesmo são as omissões os mais perigosos de todos os pecados.
A omissão, a todo momento, atua de maneira significativa nas relações de poder. Esse é o ponto fundamental para compreender onde reside o perigo da omissão. Na nossa sociedade atual onde uma elite mantém-se com uma grande carga de poder econômico, político e ideológico para dominar e subjugar as massas quando necessário, podemos perceber que a nossa inércia se compara ao que levou o homem ao estado civil, em Rousseau, a deixar-se promulgar leis opressoras, em Gramsci, e ao piores pecados, em Padre Antônio Vieira.
Um termo bastante usado em período de eleições é o “Abstencionismo”. Gianfranco Pasquino explana sobre o termo nas seguintes palavras:
Este termo é usado essencialmente para definir a não participação no ato de votar. Pode, todavia, compreender a não participação num conjunto de atividades políticas, conquanto, em suas formas mais acentuadas, a não participação possa ser definida como apatia, alienação, e por aí além. (PASQUINO, 1998, p. 7)[8]
Tomo de empréstimo a compreensão de Pasquino para a discussão: o abstencionismo, em seu sentido ampliado, como a não participação num conjunto de atividades políticas.
Quando esta não participação encontra-se em formas acentuadas, o abstencionismo desemboca-se em outras definições como apatia, alienação, etc. Percebe-se que o abstencionismo no sentido ampliado, indicando a não participação em suas formas acentuadas, trata-se de sentimentos de indiferença quanto à realidade social.
Entre os dois sentimentos, creio que a apatia seja o mais condenável. Esse, por sua vez, é o motor de propulsão da omissão que Gramsci confronta em seu texto.
Gramsci, citando Friederich Hebbel, acredita que: "viver significa tomar partido". Relacionando a definição de Gianfranco Pasquino e a postura de Gramsci, pode-se afirmar que: tomar partido não se resume ao ato de votar, mas na participação de um conjunto de atividades políticas.
Eis a grande lição que essa reflexão nos mostra: para mudar o rumo da história, é necessário tomar partido!
[1] ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Martin Claret, 2010.
[2] http://origemdapalavra.com.br/palavras/omissao/
[3] https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/Omiss%C3%A3o/
[4] GRAMSCI, Antonio. Os Indiferentes. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/gramsci/1917/02/11.htm>. Acesso em: 20 de julho de 2020.
[5] Idem
[6] HESSEL, Stéphane. Indignai-vos. Disponível em: <https://st2.ning.com/topology/rest/1.0/file/get/99249892?profile=original>. Acesso em: 20 de julho de 2020.
[7] https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=49787
[8] PASQUINO, Gianfranco. Abstencionismo. IN: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (orgs). Dicionário de política. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998
*Bacharel em Ciências Econômicas e Licenciando em Ciências Sociais.
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